segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Em respeito a todos os ‘Amys’ e a nós mesmos...


Levei um susto quando vi a pequena nota publicada na internet no último sábado sobre a ainda possível morte de Amy Winehouse em sua casa. Mesmo não sendo uma fã, ou nem mesmo sabendo decor qualquer uma das suas canções, fiquei abalada. Pensando no fim prematuro e trágico de uma existência que parecia tão profícua, em função de escolhas das quais nem sempre alguém consegue se resgatar,  respeitosamente, lembrei de Keleman ( Viver o seu morrer, 1997): “Morremos o melhor que podemos; morremos a morte que tem a ver com a doença da qual sofremos...”. Assim, me dei conta que meu abalo também se justificava pela constatação do que já estava há algum tempo previsto e comunicado.  
Tentando compreender suas mensagens (letras) mais diretivamente[1],  percebi  a forma como abertamente escancarava sua condição desesperada de encontrar algum sentido para sua existência, usando palavras ‘cruas’, francas e rudes, para amplificar seu desamparo. O produtor de algumas faixas de Back to Black, Mark Ronson, afirmou numa entrevista que Amy é brutalmente honesta em suas canções, lhe chamando a atenção para o fato de  que “há muito tempo ninguém no mundo pop aparece contando seus defeitos, porque todo mundo vem tentando de tudo para demonstrar perfeição”, justificando tal atitude pelo fato de  Amy não ser obcecada por si mesma e nem  correr atrás da fama, pela sorte de ser tão talentosa.  Porém, finaliza dizendo o que se tenta compreender agora: “Parece sempre zangada, entediada ou provavelmente viva de ressaca”. (Texto na íntegra em: http://lfigueiredo.wordpress.com/2011/07/30/amy-winehouse-a-diva-e-seus-demonios/).


A 'amplificação do desamparo', também se escancarava pelo seu corpo e por seu comportamento abertamente compulsivo por bebidas, drogas, relacionamentos, diversão, tornando-se algumas vezes agressivo, até mesmo contra seus próprios fãs durante suas apresentações.  Pela perspectiva de sua ‘doença’, essa  demonstração agressiva, talvez também estivesse  escancarando   a falta de contentamento com toda aquela adoração distanciada e pouco acolhedora, para o que realmente buscava e necessitava: ser cuidada.
Uma vez, ao ser entrevistada em sua turnê pelos EUA, foi perguntada sobre o que ela imaginaria ser seu pior defeito, e respondeu: “Basicamente, sou muito negligente, sempre jogo a precaução pela janela”. E quando a conversa desvia para como Amy saberia se está na hora de cuidar de algum de seus defeitos, ela transfere a pergunta para Blake, seu marido, reforçando a 'negligência' para consigo mesma: “Baby, se eu tivesse um defeito, quando saberia que está na hora de parar e cuidar dele?”  
Outra marca repetitiva de suas canções: a necessidade de encontrar alguém para cuidar dela; pois, sabia que sozinha não daria conta de ‘si-mesma’. A mais fundamental de todas as limitações do existir  humano, já que o CUIDAR-DE-SI é prerrogativa para existência física e existencial. Visível a fragilidade deste SER, provavelmente, ainda mais deteriorado pelo abuso constante de drogas.
Em muitas de suas letras,  apresentou mais do que pistas sobre a incapacidade de fazer escolhas compatíveis com a força criativa que carregava em si. Criatividade que, por falta de ‘cuidados’ a si mesma e por parte de outros com quem podia contar, acabou por extinguir sua própria existência:
“(…)
Tentaram me mandar pra reabilitação
Eu disse "não, não, não"
É, eu estive meio caída, mas quando eu voltar
Vocês vão saber, saber, saber
Eu não quero beber nunca mais
Eu só oh, só preciso de um amigo
Não vou desperdiçar dez semanas
Pra todo mundo pensar que estou me recuperando
Não é só meu orgulho
É só até essas lágrimas secarem 
(…)”

Seu desamparo foi também marca do seu fim.  Mais uma vez lembro de Keleman (1997) se referindo ao desamparo como a dor básica da vida de todos NÓS, afirmando que “à medida que nos descobrimos incapazes de responder a nós mesmos, a dor aumenta progressivamente e nos submerge, (...)”.  Me alivia pensar que, qualquer que seja o outro lado - se não houver nada ou se houver outro mundo - ela vai encontrar a PAZ!
Ainda mais abalada fiquei hoje, quando ao buscar por esclarecimentos a cerca de sua morte, fui dar uma olhada nos comentários deixados por outros leitores a respeito do assunto, como faço habitualmente. Lamentavelmente, o que observei foi que aqueles que não se identificaram como fãs,  tecem uma série de considerações maldosas e prepotentes, às vezes até com brincadeiras repugnantes, sobre o desfecho trágico de  uma  vida ainda em formação.  Talentosa, criativa, sensível, bonita, rica, com sucesso e acesso a qualquer sonho materialmente possível, mas, que no âmago 'duplamente doente' de sua existência. 'Duplamente doente', porque além da falta de cuidado consigo mesma, penso na dependência química (drogadição ao álcool ou outras drogas ilícitas), reforçadora automática do alívio de suas ‘’carências e dores’’ que, muito provavelmente, deixou marcas profundas e limitantes em seu cérebro.
Percebo como óbvio que todos os que adicionaram comentários amargos e grosseiros, o fizeram a fim de  minimizar disfarçadamente o seu próprio desamparo, já que, como humanos, sofrem das mesmas dores da existência (angústia, busca de sentido, acolhimento), porém, ainda mais 'enfurecidos' por Amy ter desperdiçado  tudo o que acreditam que os aliviaria da dor e do esforço existencial para lidar com a VIDA. E além disso, deixam transparecer sua ignorância sobre os problemas relacionados à drogadição. Vejam alguns exemplos de comentários:

“(...)Na certa, não merecia a fama que teve, pois não era alguém forte para saber lidar com isso, e logo caiu no mundo das drogas e bebidas. DÓ? Imagina, ela era adulta e sabia o q estava fazendo, e com certeza as consequências, mais do que expostas por outros músicos famosos que morreram em razão de drogas e bebidas. Já foi tarde! E que as pessoas consigam ídolos melhores, com bons exemplos de vida!”

Ou ainda:

“(…)Vamos parar de fazer apologia a essas pessoas que não servem de modelo de vida. (…)”.

Desculpem se precisei reproduzir esses comentários. Uma das intenções  era a de deixar  explícita a dimensão da ‘’praga emocional da humanidade”. O sentimento mais destruidor das relações humanas, uma compreensão acerca da existência limitada às próprias frustrações e limitações.  Basta observar que nos dois comentários existe referência  a exemplos ou modelos de vida, como se eles mesmos não estivessem lá muito satisfeitos com os exemplos que seguem e estivessem em busca de melhores opções, principalmente, para que não precisem eles mesmos fazerem suas próprias escolhas.  

Seja como for o escopo da dor (ou da ‘doença’) que carregam,  aliado a isso está também a falta de informação sobre a drogadição. Por trás de alguns comentários, existem crenças ou mitos  os quais, atualmente,  já foram esclarecidos por conta das novas tecnologias de imagem e estudos neurocientíficos a cerca do porquê de alguns indivíduos ‘adoecerem’ e perecerem com o (ab)uso de drogas.  Compartilhar estas informações é a outra intenção deste post, a fim de requerer algum respeito àqueles que, como Amy, sofrem  ou sofriam  com este mal.
Sabe-se hoje que, o consumo repetitivo de drogas prejudica o cérebro causando alterações de longa duração em seu funcionamento e, inclusive,  em sua forma (estrutura física,  ou como popularmente se conhece, nos “miolos”).  Estas alterações cerebrais interferem com a habilidade do usuário de drogas pensar lucidamente, de  fazer julgamentos criteriosos, de controlar o comportamento, e de se sentir normal sem o uso da droga.  Estas alterações também são responsáveis, em grande parte, pelas crises de abstinência (mal-estar físico e emocional causado pela falta da droga) e, consequentemente, pela compulsão para o uso, o que faz do vício tão poderoso. Para não sentir os fortíssimos efeitos da abstinência, o cérebro do usuário, ‘’acostumado’’ ao consumo, envia informações persistentes e cada vez mais desconfortáveis em função do consumo da droga. Somente para efeito de comparação, seria algo parecido com o que percebemos e sentimos quando ficamos sem comer por muito tempo (falta de açúcar ou glicose).
Num primeiro momento, a dependência química se estabelece  em conformidade com o Sistema de Recompensa do Sistema Nervoso Central. No sistema límbico (área relacionada ao comportamento emocional, parte mais antiga do cérebro, localizada abaixo do néo-cortex), acha-se uma área relacionada à sensação de prazer, chamada circuito de recompensa cerebral. Estudos com animais demonstram que estímulos elétricos nestas regiões provocam sensações de prazer e levam as repetidas tentativas de estimulação. Todas as drogas de abuso, direta ou indiretamente, atuam no circuito de recompensa cerebral, podendo levar o usuário a buscar repetidamente essa sensação de prazer.
A doença da dependência química,  seja ela psíquica ou física, é causada pela necessidade que muitas pessoas têm de escapar do desconforto físico e/ou emocional. É muito provável que alguém comece a beber para entorpecer sentimentos depressivos ou se mostrar muito ‘social’,  por exemplo, mas, enquanto as drogas trazem sensações agradáveis num curto espaço de tempo, essas tentativas de ‘automedicação’ acabam por se tornar tiros pela culatra. Pois, buscam alívio rápido ao invés de tratarem dos sintomas subjacentes, e assim, mascaram a verdadeira causa da busca por drogas. Quero dizer, se a droga for retirada, o problema ainda estará lá, seja por baixa autoestima, ansiedade, solidão ou uma vida familiar infeliz.
Além disso, o uso prolongado de drogas traz eventualmente seus próprios problemas ‘’hospedeiros’’, incluindo-se aí grave ruptura com o funcionamento cotidiano, com danosas consequências psicológicas, físicas e sociais. Acrescentando ainda mais desconforto para o dependente, além daquele(s) que se evitava lidar. Enfim, a potência criativa inicial, com o abuso constante de drogas,  vai se transformando em cada vez mais fragilidade e incapacidade para encarregarem-se da difícil tarefa de construírem a si próprios e ao mundo, conforme suas possibilidades, simplesmente humana. Ou, demasiadamente humana, parafraseando um filósofo alemão.

Apesar de toda ‘’força’’ do vício existem indícios no avanço científico e metodológico no  tratamento de dependentes químicos. Por exemplo, no Brasil, são comunicados índices que variam de 30 a 60% na recuperação de pacientes, dependendo do estabelecimento de saúde e abordagens adotadas no tratamento. E para que essas estatísticas continuem aumentando, conforme levantamento publicado num site americano voltado para o abuso de drogas, existem mitos sociais que funcionam como empecilho a novas reflexões e atitudes no encaminhamento, manejo e  recuperação de dependentes químicos, que devem ser reconsideradas:

Mito 1: Vencer a dependência ou o vício é simplesmente uma questão de força de vontade. Pode-se parar de usar drogas se assim o usuário realmente desejar.
- Uma exposição prolongada às drogas altera o cérebro estrutural e funcionalmente, o que resulta em poderosa necessidade e compulsão para o uso. Estas mudanças cerebrais tornam o abandono do comportamento de se drogar extremamente difícil por força de vontade ou mudança de perspectiva.

MITO 2: O vício é uma doença e não há nada que se possa fazer sobre isso.
- Muitos especialista concordam que o vício é uma doença cerebral, mas isso não significa que o usuário é uma vítima sem esperança.  As mudanças no cérebro associadas ao vício podem ser tratadas e revertidas por meio de terapia, medicação, exercícios e outros tratamentos complementares.


MITO 3: Os dependentes de drogas têm que chegar ao fundo do poço antes que eles consigam alguma melhora.
- A recuperação pode ser iniciada a qualquer momento no processo de adição. No entanto, o quanto mais cedo melhor. Quanto maior for o tempo do abuso de drogas, mais fortemente   a doença se instala e mais difícil será o tratamento. Não espere que o dependente perca tudo para intervir no processo de adoecimento.

MITO 4: Não se pode forçar o tratamento a alguém. Eles devem querer ajuda.
- O tratamento não precisa ser voluntário para ser bem sucedido. Pessoas que são pressionadas a se tratar por seus familiares, empregadores ou outras instituições estão propensas a se beneficiarem tanto quanto aqueles que escolheram  iniciar o tratamento por sua própria conta. Quando eles conseguem ficar sóbrios e seus pensamentos se tornam lúcidos, muitos daqueles que resistiam ao tratamento decidem que querem mudar.
MITO 5: O tratamento não funcionou antes, portanto, não há motivo de se tentar mais uma vez, alguns casos são perdidos.  
- A recuperação da dependência em drogas é um longo processo que frequentemente envolve algum retrocesso. Recaída não significa que o tratamento falhou ou que o caso é uma causa perdida. Melhor pensar que isto é um sinal para se retomar o caminho, ou para retornar ao tratamento ou para ajustá-lo a uma outra abordagem.

Assim como muitas outras condições e doenças, a vulnerabilidade ao vício difere de pessoa para pessoa. O que se supõe, hoje em dia, é que uma pessoa pode se tornar  dependente química para qualquer droga em função de seus genes; da idade que iniciou o consumo; e de seu meio-ambiente familiar e social.  Sendo que nenhum fator isoladamente determina se o indivíduo virá a ser ou não um dependente químico, existem muitos casos de resilientes em meios sociais totalmente desfavoráveis. No geral, são os seguintes os fatores de risco apontados como ‘fenômenos’ que aumentam a vulnerabilidade à dependência química de um indivíduo exposto ao consumo de drogas:

- Histórico familiar para vícios;
- Abuso, negligência ou outras experiências traumáticas na infância;
- Transtornos emocionais,  como  aqueles causados por  depressão e ansiedade;
- Precocidade no uso de drogas.

A explicação da neurociência é que, diante de certos comportamentos ou consumo excessivo de uma substância, o sistema de recompensa é ativado ao extremo e, por proteção, acaba se dessensibilizando. Fazendo uma comparação bem simples, é o mesmo  que ocorre com o elástico esticado além do limite e que não volta mais ao normal.
Importante salientar que quase todas as drogas têm o potencial para o vício e o abuso, da cafeína aos medicamentos prescritos pelo médico, dos drinks ocasionais, do cigarro, às drogas ilícitas, as quais ainda fomentam a violência urbana - desde a corrupção policial  ao assalto ou latrocínio em qualquer sinal de trânsito da cidade.
"O fenômeno de dependência de drogas é algo que se prende à condição humana com diversas finalidades, desde a de apaziguar as dores, as angústias, as tristezas, até o de elevar aos deuses", escrevem os psiquiatras Antônio Pacheco Palha e João Romildo Bueno no prefácio do livro "Dependência de Drogas", que compila textos de 54 especialistas no assunto. "Assim sendo", continuam eles, "é natural que, enquanto houver dor, angústia, frustração, abatimento e dúvidas o homem irá continuar o uso de drogas ". Portanto, quem na sua existência consegue passar pela proeza de não sofrer qualquer tipo de ‘trauma na infância’ , assim como, não sofrer frustrações e/ou excitações (depressão e/ou ansiedade) que causem alguma distorção no funcionamento ‘normal’ cotidiano, mesmo que ocasionalmente, frente a tantas variáveis e dificuldades existenciais ?  
É sobre isso que cantam Marisa Monte e Arnaldo Antunes no vídeo abaixo.





E assim, pensando de novo  nos comentários maldosos sobre a morte de Amy Winehouse, no paradeiro desses e na morte (finitude), a que todos estamos sujeitos a qualquer momento, em nossa condição de desamparo (o não-saber),  fenomenologicamente se pode dizer que somos todos dependentes de  sentidos para aliviar as nossas aflições. É claro que muito frequentemente somos ‘’vítimas’’ de distrações menos  ou mais lentamente destrutivas – comida, doces, chocolate, sexo, jogo, compras, etc. –, as quais nos desviam  daquilo que somos e podemos na construção de realidades verdadeiramente recompensadoras.
Filme: Requiem para um sonho" (2000) .
          Uma visão frenética, perturbada e única sobre pessoas
que vivem em desespero e ao mesmo
 tempo cheio de sonhos. 
Como em qualquer outro animal, a busca pelo prazer nos move e, por isso,  é fomentada cotidianamente pelos meios de comunicação. Tendemos a repetir ações agradáveis e às vezes é nesse prazer que encontramos uma forma de fugir das dificuldades. O problema é quando o "gostar muito" se transforma em dependência, e o prazer se transforma em dor.
Conforme Keleman (1997): “Quando nos levamos a sério, somos diretamente arremessados para a vida e para uma nova realidade do nosso róprio morrer”.  Temos sim é que estar atentos ao potencial criativo que carregamos, para que encontremos respostas mais construtivas e consistentes com nossa humanidade,  sem nos deixar levar por emoções distorcidas, como o desprezo ao sofrimento alheio.  
Portanto, a fim de que haja alguma coerência nas atitudes das pessoas que se queixam por não terem melhores modelos de vida para se espelharem, espera-se que  por meio da empatia ou compaixão pela condição humana (deles também!), conquistem novos potenciais para existir e transmitir melhores exemplos de convivência para seus filhos, parentes, amigos próximos, vizinhos, colegas de trabalho, ou ainda, para leitores de comentários da web.


Para saber mais:

- Keleman, S.. Viver o seu morrer. São Paulo: Summus, 1997.

- “Do Prazer à dor”, Revista Galileu, Especial nº 3. Agosto/2003. Disponível em: http://reformapsiquiatrica.wordpress.com/2010/08/08/do-prazer-a-dor/

- “Drugs and the Brain”, National Insitute on Drug Abuse (NIDA) – The Science of Drug Abuse & Addiction. EUA.  Disponível em: http://drugabuse.gov/scienceofaddiction/brain.html;

- “Drug Abuse and Addiction, signs, symptoms and help for drug problems and substance abuse” – HELPGUIDE.org, A Trusted non-Profit Resource. EUA. Disponível em: http://helpguide.org/mental/drug_substance_abuse_addiction_signs_effects_treatment.htm

- “Tratamento e Reabilitação”, Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (UNIAD) – Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Brasil. Disponível em: http://www.uniad.org.br/

[1] Encontrei 131 canções, algumas disponibilizadas também em português,  em http://letras.terra.com.br/amy-winehouse/ .

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